Neste sábado (15), é comemorado o dia do profissional que está presente na formação de todos os outros: o professor. Em alusão a essa data, o Portal ClicR conversou com uma das professoras aposentadas mais antiga do município de Cerro Grande do Sul (RS), Irany Souza da Silva, de 89 anos.
A educadora, carinhosamente conhecida como tia Landa, começou a lecionar aos 20 anos, e dedicou 42 anos de sua vida a levar conhecimento aos seus alunos. Revivendo a sua trajetória profissional, Irany compartilhou lembranças e ensinamentos, destacando a importância dos profissionais da educação na vida de cada indivíduo.
Como tudo começou
O desejo de se tornar professora surgiu para tia Landa no momento em que ela vivia um grande desafio em sua vida. Nos anos 1940, quando Irany tinha entre 7 e 8 anos, ela sofreu um acidente em um engenho de cana e perdeu parte da sua mão esquerda.
“Meu pai era viajante. Ele andava por aí e comprou um engenho de cana, e ali começaram a fazer melado, rapadura, cachaça […] fazendo a cachaça eu perdi a minha mão”, contou.
Após o acidente, Irany disse que o pai dela falou que a colocaria em uma escola, para que ela pudesse então aprender e se dedicar a uma nova profissão.
“Nós nem sabíamos o que era escola, aí o meu pai disse ‘vou te botar numa escola agora pra ti aprender para ensinar para os outros’. Eu fiquei muito faceira de ter que ensinar para os outros, porque a gente não sabia nada, nem sabia o que era escola”, relatou Irany.
No entanto, na época, a educadora e sua família viviam em um lugar deserto, onde não havia escola, armazéns, e nenhum outro recurso. Assim, o sonho de estudar precisou ser adiado até o momento em que a primeira professora chegou à região. “A primeira professora que existiu ali foi a dona Darcy Costa”, contou Irany.
Os pais de tia Landa tinham seis filhas. Duas já eram casadas, então somente as quatro meninas que ainda moravam na casa dos pais começaram a frequentar a escola. Com o tempo, as irmãs de Irany abdicaram dos estudos.
“Elas desistiram e foram para a lavoura trabalhar. Desistiram porque o serviço era bastante, e já haviam aprendido um pouquinho. Naquele tempo ‘estudar pra que?’, elas pensavam assim, elas achavam que escrever o nome e fazer umas continhas já chegava. E a lavoura pedia muito a ajuda delas”, disse.
“E eu, por que eu perdi a mão, eu fui estudar mais. Meu pai disse ‘agora que tu ficou sem a tua mão, tu não vai passar tanto trabalho, tu vai estudar, vai ser professora’. Eu fiquei cheia de gosto e caprichei também, olha que eu me esforcei pra chegar onde eu cheguei. Mas graças a Deus que meu estudo foi muito valorizado”, contou com orgulho.
Contudo, apesar da força de vontade, ela enfrentava muitas dificuldades para frequentar as aulas.
“O pessoal, se soubesse o que a gente passou pra estudar… Dizem que é 8 km lá da minha casa até São José, onde eu estudei. Eu ia a pé primeiro. Depois as outras desistiram e ia só eu, aí eu ia a cavalo, mas como o meu pai era carroceiro, às vezes ele precisava do cavalo, então eu tinha que ir a pé”, relatou. “A pé, com chuva, com sereno, sol quente… olha, nós se molhava tanto que a mãe agarrou uma tolda, cortou e tirou um pedaço pra gente levar na frente [para se proteger]”, acrescentou.
“Nem estrada tinha. Era só uns trilhos que o capim era trançado e a gente ia ali por aquele meio. A coisa foi muito feia uns tempos atrás, e hoje as crianças têm tudo e não valorizam a facilidade que tem”, apontou.
Início da carreira
A primeira vez que Irany esteve à frente de uma turma foi quando ela ainda frequentava a escola como aluna. Ela contou que em determinado momento, sua professora, Darcy Costa — a única professora da localidade —, possuía 94 alunos, e grande parte destes estudantes ficavam sem assistir às aulas. Diante dessa situação, tia Landa começou a ensinar o que havia aprendido para as turmas mais novas.
“Quando eu estava na terceira série eu ensinava. Nós chegávamos no colégio, eu pegava a primeira série e ia dar aula, e ela ficava com os outros. Depois que eu tinha lecionado pra primeira série, ela passava as lições pra mim, e eu fazia em casa”.
Naquela época, os estudantes frequentavam até a quarta série. Após concluir os estudos com Darcy, tia Landa se formou como professora em Sertão Santana, onde realizou a admissão. Após, ela participou de um concurso em Tapes. Aprovada, começou a lecionar no ano de 1953.
Segundo Irany, quando ela iniciou suas aulas, a localidade onde trabalhava não tinha denominação. Foi então que ela nomeou o lugar como Costa do Velhaco. Ainda hoje, a zona, pertencente a Cerro Grande do Sul, possui o mesmo nome.
Como na região não havia escola, em seu primeiro ano como professora, Irany fez da casa de seu sogro a sua sala de aula. Na ocasião, a comunidade estava construindo uma casinha onde seria a escola.
“Fizeram tijolos, compraram telha e fizeram uma casinha para eu lecionar, só que a casa não tinha assoalho, era chão. Fizeram as classes de tábua. Eles levaram a madeira na serraria e mandaram serrar, e fizeram as mesinhas. As classes eram bem compridas, todo mundo junto”, lembrou.
Ela contou que ocupava uma mesinha pequena, feita pelo pai de um dos seus alunos, e que os únicos materiais da escola eram um caderno, um lápis, uma caneta, um apagador, um quadro negro e uma caixa de giz.
Irany destacou o empenho e auxílio da comunidade para com a escola. “Os pais, de vez em quando, qualquer coisinha que eu falasse [que precisava], eles estavam lá pra ajudar. Depois de 10 anos a prefeitura foi lá. Eu lecionei assim, sem ter uma visita, só fui lá [na prefeitura] e disse que tinha esse projeto dessa escola, e lecionei 10 anos sem nunca aparecer uma pessoa lá da prefeitura, só com a força de vontade”.
A educadora ainda comentou que as famílias que residiam naquela localidade eram muito carentes, o que impossibilitava, muitas vezes, que os estudantes tivessem materiais escolares.
“Eu comprava folha de papel e a minha mãe costurava no meio. Botava quatro, cinco folhas, minha mãe costurava no meio e depois eu dobrava ali e cortava o caderninho para as crianças […] Às vezes, [as famílias] compravam um caderno e dividiam em dois para os dois filhos”, relembrou.
Além de cadernos, os estudantes costumavam escrever em pedras. ”As crianças escreviam em pedras. Por exemplo, fazia uma conta ali, corrigia lá no quadro, eles corrigiam e depois apagava aquela pra fazer outra”.
Assim como o local onde Irany estudou na sua infância, a escolinha onde ela trabalhava também era longe de sua casa.
“Eu levava mais de uma hora a pé. Depois eu disse que não dava pra ir a pé, queria desistir, aí o meu pai [falou] ‘não, vai a cavalo’, aí ele arrumou um cavalo. O meu pai foi a Sertão Santana e comprou uma celinha e um cavalo. Eu chegava lá [na escola] e os alunos desencilhavam o cavalo pra mim”.
No início, as aulas de tia Landa ocorriam somente no turno da manhã, mas com o tempo, ela também começou a lecionar à tarde. A professora conta que iniciou com 53 alunos, todos da primeira série. Ela diz que, com muito sacrifício, conseguiu alfabetizar vários estudantes que passaram pela sua sala de aula.
A educadora comentou que na sua turma existiam alunos de diversas idades, visto que onde ela ensinava nunca havia existido escola.
“Quando eu comecei tinha uns ‘homão’ maior do que eu. Eu nem chegava muito perto deles pra eles não verem que eram maiores do que eu”, disse ela, rindo.
Como era a única pessoa que trabalhava no local, as funções executadas por Irany iam além da educação básica. Ela também exercia atividades como merendeira e faxineira, além de realizar o censo, que na época era feito pelos professores. “O censo escolar era a gente que fazia. Tinha que deixar a escola fechada e viajar não sei quanto tempo a pé”, mencionou.
As viagens
Antigamente, o atual município de Cerro Grande do Sul – na época conhecido como Cerro da Fortaleza – era um distrito pertencente a Tapes.
Assim, sempre que havia reuniões referentes à educação, as mesmas ocorriam em Tapes. Para participar dos encontros, a professora precisava fazer viagens de longa distância.
Naquele tempo, a única linha de ônibus da região ficava na área central do Cerro da Fortaleza. Como Irany morava em um local isolado, ela precisava fazer um percurso a cavalo para então poder pegar o transporte coletivo que a levava até o destino final.
Durante essas viagens, a professora viveu experiências que ficaram marcadas em sua memória. “Uma vez eu passei num arroio velhaco cheio, a cavalo. Eu tinha um vestido enorme. Eu fui passar, mas como o velhaco estava muito cheio, o cavalo nadou, e o vestido nadou por cima da água”. Durante o episódio, ela estava acompanhada de Max, seu marido, e do primeiro filho do casal, um bebê de colo. Ao todo, o casal teve três filhos: Sergio, Lenira e Cenira.
Após 30 anos de profissão, a professora se aposentou. Porém, depois de um período afastada da sala de aula, ela retornou e lecionou por mais 12 anos, até se aposentar novamente.
A profissão
“Pra mim, é uma profissão muito valiosa”, disse Irany, ao falar sobre a profissão a qual se dedicou durante toda a sua vida. “Eu digo que o professor devia ser muito melhor valorizado do que está sendo. E eu acho que é uma profissão muito valiosa acima quase que de tudo, porque como que uma pessoa que não tem estudo nenhum vai seguir a vida, de que maneira?”, perguntou.
“Eu valorizo muito os professores porque hoje eu sei que eles não passam um quarto do que a gente passava, mas se incomodam com outras coisas”, disse, ao mencionar que, antigamente, os professores eram mais respeitados.
Irany alertou que “se o povo, os pais, dessem valor para o professor, isso seria muito melhor, tanto para os pais quanto para as crianças e para o professor”.
Por fim, ao ser questionada sobre o que a marcou durante a sua trajetória, ela falou sobre a alegria em saber que pessoas que foram seus alunos se tornaram professores. “Alguns alunos foram estudar mais e hoje são grandes professores, e isso, para mim, é uma grande alegria, é uma coisa que me marcou muito, [pois] começou comigo”.