Artigo – Por Ana Lucia Stumpf Gonzalez – Procuradora do Ministério Público do Trabalho em Uruguaiana
A recente mobilização de motoristas de caminhões tem angariado a simpatia da população, mesmo com o desabastecimento e as complicações decorrentes da falta de combustível. O movimento é complexo, e o que mais chama a atenção é a pulverização de lideranças, ou, na verdade, a falta de uma liderança representativa.
Embora tenham havido denúncias de que empresários do transporte também estariam apoiando a paralisação (conduta interpretada como locaute – ou seja, quando a paralisação é de iniciativa do “dono” da empresa, tipificada como crime na Lei 7783/89), parece haver grande número de motoristas autônomos engajados no movimento, e é justamente essa a categoria que sofre com a precarização, ou melhor, com a negação de direitos trabalhistas.
Isso porque os chamados transportadores autônomos de carga, a partir da lei 11442/2007, constituem uma subclasse de trabalhadores, a quem a lei nega o direito de terem direitos trabalhistas. Na prática, são trabalhadores que colocam sua mão de obra e seu veículo à disposição de transportadoras, em troca de pagamento, mas, ao contrário do motorista empregado, não possuem nenhuma garantia. Se o caminhão quebrar, problema dele. Se ficar doente, problema dele. Se a carga for roubada, problema dele. Se o combustível aumentar de preço e o frete não, problema dele também. E como ele não é trabalhador empregado, não tem filiação sindical a entidade de trabalhadores, dificultando a identificação de representante legitimado a falar por ele. Fica claro, com o atual movimento, que essa ausência de direitos e falta de representatividade cobra agora seu preço.
Essa situação é agravada com a reforma trabalhista, que dificultou o acesso do trabalhador à justiça. O que estava ruim, ficou ainda pior, porque o motorista precarizado, que na verdade era empregado, embora chamado de autônomo, não consegue buscar seus direitos na justiça, e, assim, é selado seu destino: arcar com todo o prejuízo e retirar seu frete do trocado que sobrar.
Para o motorista empregado, a lei reservou um destino tão cruel quanto o do “autônomo”. Após profundas discussões, com intensa participação do Ministério Público do Trabalho, havia sido aprovada uma legislação moderna, que visava reduzir as jornadas e, sobretudo, evitar acidentes, era a Lei 12.619/2012, mas que durou pouco. Veio a Lei 13.103/2015, que não só retirou os direitos conquistados pela lei de 2012, como agravou a situação dos motoristas, permitindo jornadas “legais” de 12, 14, 16 horas, com “direito” a descanso na boleia e sem pagamento do tempo de espera (sim, o motorista poderá ficar 12 horas parado numa barreira aduaneira e não receber nada por isso).
Apesar de toda essa situação de exploração, nunca houve uma comoção popular pela condição de trabalho dos motoristas de carga e estes sequer percebiam sua força de mobilização.
Assim, mesmo que a crise atual envolvendo o preço do combustível seja solucionada, o fato é que a vida do caminhoneiro seguirá sendo sacrificante e nada disso vai mudar se não se garantirem direitos mínimos (como jornada de 8 horas e descanso). A solução para a crise atual não passa exclusivamente pela revisão do sistema tributário, mas, principalmente, pela revisão de um sistema legislativo que permite a superexploração de trabalhadores e dificulta sua organização sindical.
Agora, sem representatividade e fragilizados pela precarização, muitos acabam acreditando na via antidemocrática, o que se mostra extremamente perigoso para nossa jovem democracia. Achar que a solução para o problema político que enfrentamos é a ruptura antidemocrática é o mesmo que entender que a solução para todas as doenças é a eutanásia. O país precisa parar de depender de milagres e messias, precisa ter um programa de gestão governamental pensado para as pessoas e não para o mercado. Somente a democracia pode curar nossos problemas institucionais. Precisamos confiar nela e respeitar o valor do voto popular.