As águas subiram sem aviso prévio e transformaram a vida de dezenas de famílias na Vila dos Pescadores, em Tapes. Desde setembro de 2023, a comunidade enfrenta um cenário de destruição, desafios e reconstrução. Este relato nos é trazido por Kelly Rigon, filha de Seu Jorge, representante da associação local, que compartilhou a realidade vivida pelos moradores.
Setembro de 2023: A Primeira Tragédia
Na madrugada do dia 26 de setembro, por volta das 5h, a tranquilidade da vila foi interrompida pelo som insistente de uma buzina de carro. Era um alerta desesperado de um morador: a água começava a invadir as casas. O vento forte do leste e a chuva torrencial intensificaram a situação, obrigando a todos a se mobilizarem.
Alertas nas redes sociais ajudaram a atrair voluntários. Caminhões começaram a chegar para resgatar móveis e outros pertences. Enquanto alguns moradores buscaram abrigo em casas de parentes, outros encontraram acolhimento na Escola Estadual Rebello. A diretora e as professoras disponibilizaram salas para os desalojados, oferecendo um pouco de conforto em meio ao caos.
Os danos foram devastadores: dezenas de casas alagadas, móveis destruídos, muros e cercas derrubados, além de quatro residências completamente desmoronadas.
Novembro de 2023: Um Alívio Temporário
Dois meses após a primeira enchente, a vila foi novamente atingida. Desta vez, os danos foram menores, pois muitos moradores ainda estavam afastados, residindo em casas alugadas. A água subiu na madrugada e recuou rapidamente, não deixando rastros significativos.
Maio de 2024: O Pior Cenário
Após semanas de chuvas intensas, a Vila dos Pescadores enfrentou sua pior enchente. No dia 27 de abril, Kelly e sua amiga Hyalle começaram a monitorar o nível da lagoa com uma régua instalada na ponte local. Os sinais de alerta se confirmaram em 6 de maio, quando, às 16h, a água invadiu a vila.
Desta vez, a destruição foi total: toda a comunidade precisou ser evacuada por mais de 40 dias. Doze casas foram completamente destruídas, e as que permaneceram em pé sofreram danos estruturais graves. Muitos moradores perderam todos os seus pertences ao tentarem resistir até o último momento.
A Luta por Ajuda
A solidariedade da comunidade e de organizações como a Superintendência da Pesca, o governo federal e as Forças Armadas foi essencial. Doações de alimentos, produtos de higiene, móveis e roupas ajudaram os moradores a sobreviver. No entanto, os desafios burocráticos para acessar auxílios do governo federal, como o “Auxílio Reconstrução” de R$ 5.100 e o programa Compra Assistida, testaram os limites da paciência e da resiliência de todos.
Os cadastros frequentemente apresentavam erros, como CPFs trocados ou membros de famílias registrados incorretamente. Além disso, a vila sequer constava no mapa oficial de áreas inundáveis, obrigando Kelly e outros moradores a reunir provas – fotos, vídeos e depoimentos – para comprovar a existência e os danos sofridos pela comunidade.
Recomeço e Persistência
Hoje, após meses de luta, cerca de 90% das famílias conseguiram acessar o auxílio financeiro, o que permitiu a muitos retornarem para casa ou aliviarem os custos do aluguel. No entanto, a promessa de novas casas ainda não foi cumprida, e dezenas de famílias seguem lutando por um futuro mais seguro.
“Nossa História, Nossa Casa”
A Vila dos Pescadores não é apenas um lugar onde se mora; é uma comunidade com mais de 90 famílias e uma história que remonta aos anos 1960, quando as primeiras famílias chegaram em busca de um futuro melhor. As tradições, os laços familiares e o amor pelo local fazem com que, mesmo diante de tantos desafios, os moradores se recusem a abandonar suas raízes.
“Ficar 40 dias longe de casa adoeceu muita gente emocionalmente. Só quem vive aqui entende por que não queremos sair. Somos guerreiros, fortes e determinados. Com a ajuda de Deus e o apoio uns dos outros, vamos continuar nos reerguendo”, conclui Kelly, emocionada.