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terça-feira, março 19, 2024

O hino e suas verdades inconvenientes

Por Marcelo Ferreira Costa*

Marcelo Ferreira Costa

Entre alguns setores, a recusa da bancada negra na Câmara de Porto Alegre em reverenciar o Hino Riograndense causou mais espanto pelo símbolo que a canção representa do que pelo verso que é objeto de protesto. Ora, símbolos não são estanques, impassíveis de crítica, análise ou mesmo modificação posterior. Senão, poucos dias antes do ato que gerou tamanha polêmica, a Austrália não teria modificado seu hino nacional — como modo de lembrar os aborígenes que são parte de sua história.

À época em que os versos gaúchos foram escritos, o negro era coisificado, mera propriedade de alguém. Naquele contexto, entender que a “coisa” servia ao dono e, por isso, não tinha virtudes, era “compreensível” — como também o foi a Traição de Porongos, episódio cruel da história farroupilha. Porém, se composto hoje, o hino faria clara apologia ao racismo.

Logo, não há o que justifique tanto assombro em relação ao protesto. Os vereadores atacaram um anacronismo, contrário à ideia de cidadania que se pretende moderna. Quem buscar um mínimo de empatia com aqueles que ali veem uma expressão racista, compreenderão o que é ser tachado de integrante de um “povo sem virtude”. Somente em 2019, foram 1.054 brasileiros libertos das condições análogas à escravidão.

Não se trata, aqui, de uma cruzada contra um símbolo. Mas, sim, contra ideias que estruturam uma sociedade que ainda vê o negro como “povo sem virtude”. Um racismo violento e estrutural, visto nas injúrias raciais e nos indicadores socioeconômicos. Não foram os gaúchos de hoje que escreveram tais versos. Mas são os de hoje que os cantam. E eles têm a missão de construir a sociedade do agora e do futuro. Fazer uma nação mais inclusiva e livre requer que enfrentemos essas discussões — e não simplesmente varrê-las para debaixo do tapete.

Os vereadores protestaram por si e por todos os negros e antirracistas que representam. A democracia representativa, gostem ou não, é assim. Ser escravizado não é uma questão de virtude. É fruto da violência e da ganância: fatores que, de tão repetidos em nosso Brasil, insistem em permanecer intactos, protegidos por “tradições”. Romper com essas estruturas exige que sejam ouvidas verdades inconvenientes — seja em relação ao nosso hino, seja em qualquer tema. Por isso, questione. Seja, também, antirracista.

* Marcelo Ferreira Costa é Procurador do Estado e Diretor de Direitos Humanos da Associação dos Procuradores do Estado do Rio Grande do Sul (APERGS)

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Cicero Omar da Silva
Cicero Omar da Silva
Chefe de Redação e Departamento de Vendas Portal ClicR e jornal Regional Cel/Whats: 51 99668.4901

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